Como a metodologia do desenvolvimento comunitário usa recursos locais para mudar realidades na periferia de São Paulo
Iara Nascimento, de 47 anos, mora no Capão Redondo, na periferia sul de São Paulo. Por muitos anos, a dona de casa e mãe de uma jovem universitária de 22 anos, divertia-se ao costurar bonecas de pano – e achava que levava jeito para isso. Porém, após ser constantemente desencorajada e diminuída pelo marido, Iara deixou a atividade e possível fonte de renda de lado.
Com ajuda do coletivo Ponto a Ponto, Nascimento conseguiu dar a volta por cima. A iniciativa atua na Chácara Santa Maria, que possui um dos com maiores índices de violência contra a mulher da região. A fim de fazer com que as moradoras rompam ciclos abusivos conquistando independência financeira, o coletivo oferece aulas de trabalhos manuais como bordados, costura criativa e pintura e gestão de negócios, para incentivar o empreendedorismo feminino.
Mas, por muitos anos, o coletivo ainda carecia de visibilidade e suporte, dentro e fora da comunidade. Além disso, era difícil para a Ponto a Ponto conseguir ajuda de outras instituições e fundações, uma vez que a maioria delas requer que a iniciativa possua um CNPJ para participar de editais de apoio, o que não era o caso do coletivo. Foi quando, em 2019, a equipe finalmente identificou uma oportunidade de impulsionar suas atividades.
Em janeiro do ano passado, a Fundação ABH lançou seu primeiro edital, sem alguns dos pré-requisitos normalmente encontrados em outros programas. O objetivo era impulsionar iniciativas locais com arrecadação de recursos, capacitação de profissionais e auxílio na articulação entre atores locais. Assim, a Ponto a Ponto foi uma das selecionadas para o projeto e, como resultado, conseguiu realizar mais de 10 parcerias com instituições para ajudar mulheres na volta ao mercado de trabalho.
Com o aumento da receita das alunas, foi possível não só quebrar um ciclo de violência, mas aumentar a autoestima e a confiança dessas mulheres. Por exemplo, após a junção do trabalho da Ponto a Ponto com a Fundação ABH, o coletivo notou, por meio de conversas com as participantes, um aumento de 40% no número de alunas que conseguiam ver características positivas em si.
Iara foi uma das atendidas pela parceria em 2019. Realizou a primeira venda de uma boneca de pano e, percebendo que seria um meio de sustento, decidiu continuar com a carreira: “com o coletivo, aprendi onde fazer as minhas compras de matéria prima, já participei de bazares e vou participar da minha primeira feira”, afirma.
O impacto para a Ponto a Ponto foi tanto, que o grupo decidiu se tornar um dos apoiadores da Fundação ABH. Mensalmente, os organizadores do coletivo fazem doações para a instituição, a fim de garantir que mais iniciativas da comunidade tenham as mesmas chances e oportunidades que tiveram.
Atuação na periferia sul de São Paulo
O coletivo Ponto a Ponto foi uma das dez iniciativas selecionadas na periferia sul de São Paulo pelo edital da Fundação ABH, em 2019. De acordo com Marina Fay, Diretora Executiva da instituição, a região foi escolhida por apresentar condições precárias de saúde, educação e transporte e abrigar cerca de 30% da comunidade da capital paulista. Além disso, três das cinco subprefeituras com maior número de favelas estão na periferia sul.
Uma delas é Campo Limpo, cenário de outra iniciativa, que conseguiu expandir seus negócios, com apoio da Fundação ABH. O projeto Capão Cidadão, localizado no distrito de Capão Redondo, oferece aulas de reforço escolar, acompanhamento psicossocial e oficinas de lutas marciais para cerca de 180 crianças da região.
“A minha filha Bruna melhorou na escola com o reforço. Mas a maior diferença foi com a Isabella, que tem problema de ansiedade e já repetiu de ano uma vez. Ela melhorou muito por causa das oficinas de dança e de jiu-jitsu”, diz Luciana Oliveira dos Santos, de 41 anos, mãe das alunas de 9 e 11, respectivamente.
Segundo Fay, o objetivo da Fundação ABH vai além de arrecadar dinheiro para projetos sociais. Criada em 2014, a instituição possui uma proposta diferente, já que trabalha com a prática do desenvolvimento comunitário local. Isso significa mergulhar de fato no dia a dia dos moradores da região, buscando entender suas demandas e, principalmente, seus potenciais.
Além de apoio financeiro para a Capão Cidadão – com mais de R$ 75 mil arrecadados – foram realizados projetos de capacitação, parcerias com colégios locais e aumento da visibilidade nas redes sociais. No Instagram, por exemplo, o número de seguidores da iniciativa educacional da periferia sul aumentou quase 60%.
A Capão Cidadão também conseguiu, junto à Fundação, aumentar a nota média dos alunos em 24%, tanto em matemática quanto em português. O objetivo foi atingido por meio de aulas particulares, oficinas de dança e lutas, sessões com psicólogos e oferecimento de uma alimentação adequada, com cerca de 80 refeições distribuídas por dia.
Passos para o desenvolvimento comunitário local
A Diretora da Fundação ABH explica que para montar seu planejamento de suporte, a instituição usa como base a vida real dos moradores. Assim, é possível ir até o cerne do problema e entender formas de explorar o potencial da comunidade. Isso proporciona mudanças mais estruturais, para que os membros possam se autogerir com mais facilidade, em um ambiente mais igualitário.
O primeiro passo é a identificação do problema por parte dos moradores. Os profissionais da Fundação acreditam que apenas as pessoas que convivem na região podem, realmente, dizer quais são os pontos fracos do local e com o que precisam de ajuda.
Na etapa seguinte, a fundação busca identificar os potenciais da comunidade. Nesse momento, recursos locais – sejam financeiros, humanos, materiais – são analisados. Procura-se saber quem, da própria região, pode ajudar de alguma forma a iniciativa.
No desenvolvimento comunitário local, a comunidade é a protagonista de seu processo de mudança. Os recursos vêm, em sua maioria, das famílias e dos negócios locais – mostrando e salientando a força e importância daquela comunidade. O resultado é um ciclo de fortalecimento, no qual os moradores ajudam a solucionar os problemas e exploram suas forças e potenciais, que, muitas vezes, poderiam não ser devidamente aproveitados.
O apoio mais importante à Capão Cidadão, por exemplo, não feito do âmbito financeiro. O aumento da rede colaborativa, com profissionais da região dispostos a atuarem na organização, foi responsável por algum dos números alcançados.
Até março de 2020, a Capão Cidadão teve 108 estudantes inscritos em aulas de reforço e 40 alunos para oficinas de jiu-jitsu – ambas com mais de 90% de frequência de comparecimento. Além disso, agora, a Capão conta com novos apoiadores para as oficinas de ballet, que vão impactar diretamente jovens como Isabella, que encontrou na dança e nas lutas marciais uma forma de aumentar sua concentração.
“As oficinas da Capão Cidadão são ótimas, as meninas melhoraram muito. Com certeza, tudo isso impactou muito positivamente na vida de minhas filhas”, completa a mãe de Isabella.