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19 nov 2024, ter

Aline Pellegrino: “Falaram que eu estava louca, mas as coisas aconteceram, e aconteceram com força”

     Quando criança, os meninos não a deixavam jogar bola. Mas ela não só encontrou seu espaço, como passou a montar os times. Chegou à seleção brasileira, foi capitã por sete anos. Ao pendurar as chuteiras, foi campeã pernambucana no comando técnico do Vitória das Tabocas. Hoje, é diretora do Departamento de Futebol Feminino da Federação Paulista de Futebol (FPF). Aline Pellegrino é o que muitos chamariam de “líder nata”, mas insiste que liderança para ela é uma mistura de intuição e construção.

     Durante a última semana, Aline representou a CONMEBOL na edição deste ano do Programa de Liderança Feminina no Futebol, organizado em Zurique, na Suíça, pela FIFA, pela UEFA e pela Escola de Negócios IMD. Foram cinco dias de palestras, atividades, dinâmicas de grupo e trocas entre as 24 participantes de todas as partes do mundo.

    Após o programa, Aline contou mais sobre a experiência, revelou em quais líderes se inspira e avaliou a liderança da sueca Pia Sundhage no comando da seleção brasileira feminina desde julho deste ano.

Como você recebeu o convite para cursar o Programa de Liderança Feminina no Futebol?

A gente fica muito feliz com o convite porque são poucas as pessoas que têm acesso e uma oportunidade como essa. Eu vim para cá depois de algo muito especial. A final do Campeonato Paulista bateu o recorde de público de um jogo de futebol feminino entre clubes do Brasil (28.609 pessoas). Isso foi importante porque esse ano vimos outros países pelo mundo também quebrando recordes. E acho que um programa como esse é muito importante para nos tirar da nossa zona de conforto. Você sai daqui pensando que é preciso estar sempre atenta, melhorar muita coisa. Me senti muito desconfortável, mas pelo lado bom. Todas essas mulheres conquistaram muitas coisas e a gente já se sente muito forte, mas não podemos achar que já chegamos ao topo e não precisamos aprender mais. E a questão da liderança passa por conhecer a nós mesmos – como liderar alguém se você não se conhece? Isso é muito interessante e foi trabalhado aqui intensamente, a líder que eu vou ser. É claro que sempre existe uma hierarquia, mas eu sou muito de construir junto. Foi assim minha vida inteira como atleta e acho que o que eu faço fora de campo como gestora é a mesma coisa – tentar unir pessoas e fazer todo mundo acreditar. Se não der certo, a gente procura outro caminho.

Durante essa semana você participou de palestras, atividades, dinâmicas de grupo. Houve um momento especial, que a emocionou ou marcou de forma especial?

É uma construção: tem a parte teórica, a prática e muita conversa. Falamos o que estamos sentindo em relação a tudo. E isso é algo que não fazemos muito no nosso dia a dia. Até agora o que mais me marcou foi uma fala da Prof. Ginka. Ela disse que, ao fim do dia, você deveria sempre trocar com alguém, por exemplo, ao chegar em casa, e falar sobre coisas boas que aconteceram no seu dia. Muitas vezes a gente fala do que não deu certo. E isso é algo que quero colocar em prática: chegar no final do dia e dizer: “vi um pôr do sol muito bonito na volta do trabalho”.

Você foi capitã da seleção, técnica, hoje lidera o Departamento de Futebol Feminino da Federação Paulista de Futebol. Ser líder é algo natural para você?

Aqui nos questionamos se a liderança que temos é nata ou é construída. É óbvio que se constrói, mas ao mesmo tempo eu sinto que tem algo muito intuitivo e natural. Muitas vezes eu ouço sobre processos ou estratégias e penso: “mas quando eu tinha 15 anos eu já fazia isso sem saber”. Existe uma influência, seja do pai ou da mãe, e começamos a perceber olhando para trás o que nos tornou aquela pessoa, quais aspectos nos moldaram. Por exemplo, os meninos não me deixavam jogar bola e eu tinha que brigar por isso. Quando vi, já estava montando o time. Então a gente vai construindo desde sempre, e hoje é possível se preparar para ser um líder. Mas eu sinto que eu tenho também algo muito intuitivo que me ajuda e me faz ser diferente.

Qual o tipo de liderança você gosta de exercer e sobre qual tipo de liderança você gostar de estar?

Eu acho que o meu estilo de liderança passa por colocar todos no mesmo nível, com a mesma importância. Claro que a responsabilidade maior vai ser minha, mas vamos fazer tudo muito junto. As pessoas têm que se sentir importantes. Por menor que seja a responsabilidade, não significa que não é essencial para o resultado. Mas quando penso no meu líder, talvez eu já prefira que haja a questão da hierarquia: ter claro o que eu tenho que fazer, para quem eu tenho que entregar. Isso é estranho, porque com o meu time eu prefiro todos no mesmo nível e trabalhando juntos, mas na hora de ser liderada prefiro ter instruções claras.

Isso poderia estar relacionado com o seu tempo dentro de campo, já que como capitã vocês eram 11 jogando juntas, mas havia o técnico acima de vocês que dava diretrizes claras?

Sim, pode ser. Querendo ou não a gente acaba sendo influenciada por situações e nem consegue perceber. É engraçado porque eu fui capitã por sete anos e durante esse tempo havia a Cris, a Marta, a Formiga. Eu carregava a braçadeira, mas eu não era a única líder. A Formiga era uma baita líder, sempre foi, uma líder técnica. Então talvez por isso quando eu sou a líder eu tenho isso de querer todos jogando junto, porque naquela seleção eram várias líderes, todas com a personalidade muito forte, e dava certo. A Cris era mais brava, a Dani era mais forte. E eu conseguia ver a liderança de todo mundo e tentava fazer todo mundo se entender. Com a minha equipe, tento pensar dessa forma também. Na FPF, tenho que falar com 12 times diferentes, tem muita mediação.

Tem um líder ou uma líder que você admira?

   É sempre uma pergunta difícil, mas acho que a minha mãe. Ela que cuidava da casa, de todo mundo, dava ordem em mim, no meu irmão, no meu pai, nos quatro cachorros. Ela foi uma boa líder, conseguia observar e exercer uma influência positiva em diversas situações. Pensando fora do esporte, foi ela. No esporte, foi o René Simões. Ele chegou na seleção em 2004, a época em que eu cheguei também. Ele teve um trabalho muito difícil quando pegou aquela seleção, com vários vícios, vindo de fora do feminino. E fazer o que ele fez em quatro, cinco meses, e levar a gente para um pódio olímpico, com chance real de ter conquistado o ouro, foi um belo trabalho. Eram muitas atletas, e tivemos muitos cortes. Ele colocou todas nós sob pressão para tirar o máximo de cada uma e levar 18 que estariam prontas para enfrentar qualquer coisa. Então no final pensávamos no esforço por ter chegado até lá, o quanto era merecido, o quanto éramos fortes e poderíamos fazer um bom trabalho. Às vezes as pessoas não veem o todo, mas eu lembro de cada detalhe, e o resultado que ele trouxe em pouco tempo foi incrível. Ele é uma pessoa que tenho como exemplo e com a qual mantenho contato. Hoje tem também o Mauro Silva, que é o meu gestor imediato. Eu sou muito acelerada, estou sempre ansiosa, querendo fazer as coisas, e o Mauro é muito calmo, me chama, pergunta se já pensei nisso ou naquilo. É uma pessoa que tem me ajudado muito.

Como você vê a liderança da Pia Sundhage à frente da seleção brasileira feminina?

Ela é incrível. Dá vontade de virar para ela e falar “tá bom, professora, o que eu faço?” Pegar a chuteira, voltar a jogar. É surreal. A primeira vez em que eu estive com ela foi no ano passado, quando falei depois dela num painel. Ela contou várias passagens da carreira dela, e uma delas foi aquele jogo entre Estados Unidos e Brasil na Copa do Mundo de 2011, pelas quartas de final. E eu então comecei a minha palestra falando que um dos principais momentos da vida dela foi o pior da minha (risos). Mas que naquele dia estávamos juntas, falando sobre isso, no mesmo painel, mostrando a força que o futebol tem. E independentemente do resultado, aquilo fez diferença para eu me tornar uma atleta melhor. A Pia parece estar muito feliz no Brasil. No primeiro campeonato que tivemos, a torcida já estava gritando o nome dela, e eu acho que a gente nunca teve isso. Ela é uma pop star – todas a veneram e acreditam muito no trabalho dela. Eu espero que ela possa ficar por muito tempo. Claro que ela não tem a solução para todos os nossos problemas, mas eu acho que ela pode fazer um bom trabalho e que as meninas também estão com esse sentimento muito bom. Ela sabe tudo de todo mundo, é a caixa-preta do futebol. Ela sabe qual é o ponto forte dos Estados Unidos, mas ela também sabe o ponto fraco. O mesmo para a Suécia. Ela estudou todas essas seleções. E também a do Brasil, ela conhece as nossas fragilidades. E já podemos ver algumas mudanças. Às vezes é difícil porque mesmo jogando melhor, o resultado não vem. No torneio da China, acabamos perdendo nos pênaltis, por exemplo. Mas não podemos colocar nas costas dela. Vamos estar muito melhor na Olimpíada no ano que vem, independentemente do resultado, e ela vai passar muita segurança para as jogadoras nessa transição. Sem um nome forte como o da Pia, na hora em que a Formiga, a Marta e a Cris falarem que estão saindo, todos ficariam muito perdidos. Mas a Pia vai estar lá para falar: “gente, venham aqui que eu vou conduzir vocês”.

O que é o Guerreiras Project?

    O Guerreiras é quase um filho, algo pelo qual tenho um carinho gigante. É um projeto que tem mulheres incríveis, cada uma num canto do mundo, mas todas olhando para a questão da igualdade de gênero e como a nossa sociedade pode ser melhor. Hoje se fala do problema, antes nem se falava. E eu sempre achei que tinha algo errado quando me diziam que eu não podia jogar futebol. “Por que eu não posso jogar futebol?” Então é um projeto liderado por pessoas interessadas em trazer essa mudança, e nos conectamos por meio do futebol, que pode ser uma ferramenta muito forte para contribuir e dar voz. Nossa metodologia consiste em ver, pensar, falar. Temos oficinas com crianças, jovens e adultos. Por exemplo, mostramos fotos e todos os árbitros são homens. “Mas mulher pode apitar?” “Pode”. Então mostramos outras fotos, mas todos os jogos são de futebol feminino. “Mas é só aqui que pode?” Assim fazemos as pessoas pensarem, construírem, e é muito rico. Tenho certeza de que esse é um projeto que vai crescer e daqui a algum tempo gerar muitos frutos.

O que você vai levar na bagagem de volta para o Brasil, além do chocolate suíço?

(Risos) Muita esperança. Olho para trás e penso na minha infância no Brasil, quando falavam que eu não podia jogar, que nada iria dar certo. E penso que cheguei até aqui. Então quantas mulheres a gente pode ajudar, criar oportunidade? Eu levo essa vontade de querer continuar trabalhando, acreditando que o futebol das mulheres é um baita produto, tem espaço e as pessoas precisam entender, consumir. Tenho esperança de que estamos no caminho certo. Muita coisa que acontece hoje eu achei que eu nem fosse estar viva para ver. Então acho que já avançamos muito e isso me dá muita certeza. As pessoas falaram que eu estava louca, mas as coisas aconteceram, e aconteceram com força. “Isso é impossível”. “Não, não é”. Saio com muita vontade e muita gana de levar essa mensagem e ser multiplicadora dessas ideias. Fonte Fifa

By Riselda Morais

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